Ler e escrever são apenas as etapas iniciais do processo de alfabetização. É a partir daí que começa o maior desafio para os professores: como tornar os alunos leitores e escritores competentes?
O contexto de formulação desta questão e algumas soluções são o tema central da reportagem A turma sabe ler e escrever. E agora?, produzida pela jornalista Thaís Gurgel para a edição 205 da revista Nova Escola da Editora Abril.
Na reportagem a coordenadora do Centro de Estudos em Educação e Linguagem da Universidade Federal de Pernambuco (CEEL/UFPE), Telma Ferraz Leal comenta sobre as responsabilidades do professor diante dos desafios.
Confira abaixo a reportagem na íntegra:
A turma sabe ler e escrever. E agora?
Depois de dominar o sistema de escrita, as crianças devem ser estimuladas a ler para estudar e a ter mais responsabilidade na melhoria dos próprios textos
Por Thais Gurgel
Revista Nova Escola - 09/2007
Os próximos passos são investir na utilização de recursos discursivos - como coesão, coerência, uso adequado da pontuação e organização de informações -, e no desenvolvimento do comportamento leitor para aprender.
Deise Kele da Silva, professora do 3º ano da EM Cristiano Cordeiro, em Recife, tem essa tarefa desde o início deste ano: dos 29 alunos que ela recebeu, 21 já dominavam o sistema de escrita.
Esse diagnóstico, feito por ela em março, reflete um tipo de formação de classe bastante comum nas diferentes regiões do Brasil: a maioria dos estudantes chega alfabetizada do 2º ano, mas ainda tem os que ainda são silábico-alfabéticos - e é preciso trabalhar bem com os dois grupos.
O trabalho com vários gêneros - como o realizado pela professora Mariluci Kamisaka na reportagem de capa da edição de agosto de Nova Escola - também é um pressuposto na prática de Deise.
As crianças aprendem como são usados os diversos materiais de leitura e o propósito comunicativo de cada um, sempre tendo como base para o trabalho as situações enfrentadas pelos alunos no dia-a-dia.
A partir do 2º ano, os conteúdos podem ganhar complexidade, uma vez que os pequenos têm condição de se aprofundar no uso da linguagem por já dominarem os aspectos notacionais dos textos.
INVESTIR NA QUALIDADE
Há anos as pesquisas na área de alfabetização apontam para uma mudança de perspectiva no trabalho com a produção de textos: não basta apenas registrar as palavras e frases sem erros ortográficos.
É preciso se expressar bem por escrito, de acordo com diferentes objetivos. O papel do professor é criar situações nas quais a criança ganhe progressivamente autonomia nessa habilidade e atue para melhorar a própria produção.
Para isso, ela tem de conhecer as características que compõem um bom texto e se sinta diretamente responsável pela qualidade do que faz. Isso transforma o modo de encarar as atividades: em vez de escrever apenas para ser corrigido pelo professor, o aluno passa a ter um propósito e, para tanto, precisa considerar o público a que se dirige.
Assim, abre-se espaço para a turma se dedicar a elaborar textos compreensíveis - e não só legíveis -, cumprindo o objetivo de se comunicar com um leitor específico. Para elaborar uma notícia de jornal, por exemplo, a preocupação deve ser produzir com as mesmas características de estrutura e organização de informações verificadas nas reportagens de verdade.
"O professor tem de introduzir questões ortográficas e de pontuação ao mostrar à turma a necessidade de buscar uma leitura fluente e agradável", diz Kátia Lomba Bräkling, selecionadora do Prêmio Victor Civita Educador Nota 10. "Quando a organização de informações, a coesão, o uso dos tempos verbais e a pontuação acontecem durante a análise de um texto, as convenções da língua ganham significado e serão aplicadas pelo aluno com mais facilidade e propriedade."
Este ano, por exemplo, ela já trabalhou com diversos gêneros. Depois de ler várias fábulas, ela pediu à turma para escrever textos sobre as atitudes dos personagens e a moral das histórias.
Quando usou textos científicos para ensinar conteúdos relativos ao corpo humano, a garotada foi estimulada a produzir textos do mesmo gênero. Já os informativos de diversos tipos foram distribuídos para a turma pesquisar sobre a origem do frevo e escrever uma biografia. "Neste semestre, o foco são as notícias de jornal, para se aprofundar em questões ambientais", conta Deise.
Além de desvendar com os estudantes as características de diversos gêneros, ela elege conteúdos de Língua Portuguesa a serem esmiuçados, como o uso de pronomes, concordâncias nominal e verbal e pontuação. "Definidos os objetivos, partimos para a escolha das melhores produções que possam ampliar o repertório das crianças."
Como nem todos os alunos têm hipótese alfabética, Deise prepara propostas diferenciadas para quem ainda precisa se apropriar do sistema de escrita. Para eles, o trabalho indicado é a preparação de listas ou a memorização de histórias curtas ou poemas.
Mas não é só isso. Esses estudantes também participam das outras atividades que a maioria do grupo desenvolve. A melhor maneira de fazer esse entrosamento é promover agrupamentos entre os já alfabéticos e os que ainda estão chegando lá, procedimento que permite o aprendizado entre os colegas.
MODELO DE LEITOR
Uma das maneiras de adquirir autonomia na leitura - outro objetivo depois que a turma já estiver alfabetizada - é justamente observando como age um leitor competente. Por isso, quando a professora lê para a turma, pedindo ou não que todos acompanhem com o texto em mãos (leitura compartilhada), ela está propiciando uma das situações didáticas mais ricas para atingir essa meta.
A escolha dos textos deve desafiar a turma a dominar cada vez mais o mundo da escrita. "É interessante selecionar produções de difícil acesso aos estudantes, que os desafiem com novos vocábulos e expressões, para ampliar o repertório e exercitar mecanismos de inferência que todo leitor proficiente utiliza. Ao longo da vida, nem mesmo um adulto jamais conhecerá todas as palavras com que se confronta", diz Carmen Sanches Sampaio, professora da Escola de Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Alfabetização dos Alunos e Alunas das Classes Populares (Grupalfa), da Universidade Federal Fluminense.
Outro ponto importante para a criança atingir a autonomia como leitora é saber buscar informações para usar posteriormente na produção textual. A partir do 3o ano, a turma já é capaz de fazer pesquisas e ter procedimentos de estudo, como sublinhar, anotar os dados relevantes e elaborar resumos - estratégia útil para hierarquizar os dados colhidos.
METAS A LONGO PRAZO
Deise não trabalha sozinha: ela faz o planejamento do ano letivo juntamente com a coordenação pedagógica e com os outros colegas. Esse entrosamento é importante para delimitar as metas coletivas para cada período e facilitar o desenvolvimento contínuo e progressivo dos estudantes.
"Quando as propostas curriculares são claras, sabe-se onde o aluno deve chegar e quais conteúdos de leitura e escrita ele precisa dominar. Cada professor também tem clareza de suas responsabilidades e assim todos trabalham para um objetivo comum a longo prazo", afirma Telma Ferraz Leal, coordenadora do Centro de Estudos em Educação e Linguagem (Ceel), da Universidade Federal de Pernambuco.
LER E ESCREVER COM AUTONOMIA...
...Faz com que os alunos aprendam a buscar informações.
...Dá responsabilidade à criança em relação ao progresso de sua produção textual.
TEORIA
A gramática no uso
O trabalho sobre pontuação, ortografia, coerência, coesão ou tempos verbais deve ser feito desde cedo na escola, sempre com base em situações enfrentadas no momento da escrita. Uma lista de frases em que não se conhece a origem de nenhuma delas (e, portanto, o uso do texto) só faz com que o aprendizado em relação à língua se distancie da aplicação prática na produção textual.
A idéia é refletir sobre esses aspectos de forma contextualizada para que as crianças experimentem as situações vividas pelo escritor proficiente e se sintam responsáveis pelo ganho comunicativo do texto.
A revisão coletiva é ideal para abordar conteúdos gramaticais. Objetivando a clareza, a professora pode indicar pontos a serem melhorados. "A observação da criança deve se ater a aspectos restritos: se a idéia é trabalhar a coerência de tempos verbais, parte-se de um exemplo, e estuda-se somente este aspecto", diz Kátia Lomba Bräkling.
A professora faz as delimitações: "Se começamos contando a história no passado, devemos seguir assim até o fim". Depois, esse aprendizado é generalizado e registrado em um caderno ou em um cartaz. O aprendizado, assim, é sistematizado sem ser alienado de sentido. Mesmo usando exemplos contextualizados, é preciso reservar momentos de aprofundamento em determinados temas gramaticais, como no trabalho sobre a conjugação de verbos.
O QUE SE APRENDE LENDO?
Ler com autonomia e proficiência é um requisito básico na formação de qualquer estudante. Mas o simples acesso a materiais impressos não garante que as crianças cheguem lá: é preciso abordar conteúdos de leitura. Nesse trabalho, é o planejamento que dita o que será desenvolvido.
A leitura feita pelo professor, como no início da alfabetização, continua importante no desenvolvimento da familiaridade com o comportamento leitor e no aprendizado do que se espera de cada tipo de texto.
Quando se lê apenas por prazer, é bom compartilhar idéias e opiniões e relacioná-las a leituras e experiências anteriores. Mas, quando se pega um manual de instrução ou uma receita culinária, é para usá-los na prática.
O professor transforma-se assim em leitor-modelo e a experiência de observá-lo neste papel fica mais rica quando são levados para a sala textos de difícil acesso aos alunos, como os de qualidade literária, jornalística ou científica.
A roda de leitura é outra possibilidade de formação de comportamento leitor. No ato de ler, certos procedimentos devem ser ensinados, como a consulta ao índice e a dicionários e enciclopédias (em que não se lê continuamente, mas por tópicos, na busca de uma informação) e o manuseio do jornal, entre outros.
ATIVIDADE
Produção textual
O que é - Escrita individual ou em pequenos grupos, sabendo os propósitos da atividade e em que contexto a produção será lida.
Quando propor - Três vezes por semana, com momentos variados (reescritas de contos, criação do início ou do fim de uma história, resumos ou relatos).
O que a criança aprende - Recursos discursivos pragmáticos e aspectos textuais e gramaticais.
COMO DEISE TRABALHA
Criação do contexto
A professora garante que os alunos conheçam o assunto e tenham familiaridade com a estrutura do gênero. Isso significa ler para eles diversos textos, analisar com a turma aspectos formais e garantir o acesso às informações que devem constar da produção.
Ao trabalhar com a classe um projeto sobre a história do frevo, a professora propôs a produção da biografia do compositor Capiba. Para isso, a turma leu outras biografias para conhecer o gênero e buscou informações em reportagens, enciclopédias e manuais sobre os passos da dança.
Revisão coletiva
A professora prestou atenção na produção de todos, indicando os momentos em que a revisão deveria ser feita para a verificação da clareza. Deise recolheu as produções, leu-as, anotou os problemas freqüentes e selecionou uma delas para ampliar com a ajuda de um retroprojetor.
Foi quando trabalhou problemas como a repetição de pronomes e conectivos. Tendo essa atividade como base, Deise solicitou que todos escrevessem novamente o texto, aprimorando a produção.
LEITURA PARA ESTUDAR
O que é - Ler para aprender algo, destacando informações no texto, grifando ou tomando notas em um caderno, procedimentos que devem ser ensinados pelo professor.
Quando propor - Diariamente, já que o trabalho contínuo faz com que a criança aprofunde seus conhecimentos com mais solidez.
O que a criança aprende - A escolher os materiais apropriados para seus objetivos de pesquisa, lendo títulos e sinopses em contracapas, e a localizar os dados na fonte por meio da leitura do índice.
COMO DEISE TRABALHA
Ensinar procedimentos
Ao estudar o corpo humano, a turma de Deise aprendeu conteúdos de Ciências e procedimentos de leitura para estudar. As crianças buscaram informações sobre os cinco sentidos - por exemplo, em atlas do corpo humano, livros didáticos e revistas.
A professora orientou a turma a utilizar os artifícios já conhecidos, como tomar notas, grifar o texto e resumir enunciados, para depois reutilizá-los no momento da produção.
Intervenção da professora
Deise focou em comportamentos e procedimentos leitores que ajudaram na busca de informações e no registro, ensinando os pequenos a consultar o índice e a buscar em livros mais gerais as informações procuradas.
Ela também questionou se era necessário copiar todo o parágrafo ou se bastava resumir o conteúdo. Para isso, a professora antes teve de relembrar os pressupostos de um resumo: deve ser menor que o texto fonte e trazer só as informações principais de maneira organizada.
TRABALHO COM NOTÍCIAS
Quando o desafio chega mais cedo
A professora Janice Cunha, da EM Maria Thereza da Silveira, em Porto Alegre, teve sua experiência relatada no exclusivo online da reportagem de capa da edição de agosto de NOVA ESCOLA, sobre a alfabetização inicial. Todos os 14 alunos já tinham hipótese de escrita alfabética na metade da 1a série, por isso ela se deparou com as questões vividas por Deise mais rápido do que o comum.
Entre as atividades que Janice propôs, está a confecção de um jornal. Primeiro, ela distribuiu exemplares diferentes a cada grupo da sala para que todos os manuseassem. Depois foi eleita a notícia do Cristo Redentor como uma das sete maravilhas do mundo para trabalhar. A tarefa era encontrar a chamada na primeira página.
Os pequenos tiveram certa dificuldade, mas conseguiram com a ajuda dos colegas de grupo que já tinham familiaridade com o gênero. Em seguida, eles percorreram o periódico livremente, atendo-se ao que mais interessasse. A professora pediu então que todos comentassem as notícias lidas e propôs que cada um se imaginasse como repórter para escrever uma matéria.
O tema escolhido foi um ato de violência no bairro. No fim, ela montou um jornal com os textos e o expôs na feira interdisciplinar da escola. "Mesmo sendo bastante novas, as crianças tinham condições de realizar tarefas mais complexas, uma vez que tinham hipótese alfabética", conta Janice.
QUER SABER +?
Contatos
EM Cristiano Cordeiro, Av. Santos, s/nº, UR2, Recife, PE, 51020-000, tel. (81) 3232- 3107.
EM Maria Thereza da Silveira, R. Furriel Luiz Antonio de Vargas, 135, 90470-130, Porto Alegre, RS, tel. (51) 3330-7824
Centro de Estudos em Educação e Linguagem, www.ufpe.br/ceel
Grupalfa www.grupalfa.com.br
Kátia Lomba Bräkling, kbrak2006@gmail.com
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