11 de maio de 2011

Decreto obriga o ensino da Lingua Brasileira de Sinais nos cursos de magistério e fonoaudiologia

Publicado em 10/05/2011, às 15h56, no Jornal do Commercio

por Gláucia Nascimento

O Decreto 5.626, de 22 de dezembro de 2005, que regulamenta a Lei 10.436, dispõe sobre a obrigatoriedade do ensino da Língua Brasileira de Sinais como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e superior, e nos cursos de Fonoaudiologia, de instituições de ensino, públicas e privadas, do sistema federal de ensino e dos sistemas de ensino dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Esse decreto assegura a garantia ao atendimento educacional especializado e o acesso das pessoas surdas à educação em todos os níveis, etapas e modalidades de educação, desde a educação infantil até à superior. Essa determinação legal garantiu aos indivíduos surdos o direito de acesso às escolas em turmas do ensino regular, as chamadas turmas de inclusão, em que compartilham o mesmo espaço educativo com estudantes ouvintes. Esse fato dá aos estudantes surdos a possibilidade de se integrarem à comunidade escolar de modo mais igualitário em relação aos ouvintes e de receberem assistência educacional semelhante, considerando-se suas especificidades interacionais.

Como em toda experiência nova, os atores envolvidos na inclusão escolar das pessoas surdas se veem, no momento, em processo de adaptação, estando ainda à procura de meios para o aprimoramento de suas práticas com vistas ao bom êxito esperado, há tanto tempo, por nossa sociedade. Todo grande projeto que atende a demandas sociais históricas precisa de constantes investimentos para que possa dar bons resultados. No caso da inclusão escolar das pessoas surdas, para que esta ganhe cada vez mais qualidade, é preciso haver mais investimentos na formação continuada dos docentes que atuam em turmas inclusivas, dos intérpretes de LIBRAS que já estão nas escolas e dos profissionais que pretendem fazer parte desse grupo. Consideramos, entretanto, da mais alta relevância que essas necessárias ações de formação continuada tenham como base aspectos relacionados ao letramento de pessoas surdas.

O significado mais comum da palavra letramento está relacionado ao universo das pessoas consideradas cultas, eruditas; aquelas que têm formação  universitária, que desempenham atividades intelectuais, principalmente ligadas ao ensino e à pesquisa científica. Nem tão recentemente, o uso dessa palavra, incorporada à terminologia das áreas da Educação e da Linguística — com o significado de conjunto de práticas sociais que denota a capacidade de uso de diferentes materiais escritos — tem estado cada vez mais presente nos discursos de educadores de todos os níveis de ensino que entendem que desenvolver as competências de leitura é condição indispensável para um bom aproveitamento em todas as disciplinas. Nessa perspectiva, o letramento pressupõe um trabalho de inserção dos estudantes nas práticas sociais que se concretizam por meio da linguagem. Ou seja, pressupõe que se tomem como objeto de ensino os diversos gêneros textuais (os textos em geral) que circulam na sociedade. Se para os estudantes em geral, a proposta pedagógica do letramento pode propiciar ganhos significativos, para os estudantes surdos, os ganhos podem ser ainda mais significativos.

Essa nossa defesa em prol da adoção da proposta do letramento para ações pedagógicas na educação de surdos se justifica pelos motivos que passamos a apresentar. O português para os surdos não oralizados é uma segunda língua; a primeira língua, ou língua materna dessas pessoas, é a LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais). A forma de expressão natural dos surdos é, portanto, a vísuo-espacial, que se realiza por meio de sinais (equivalentes às palavras das línguas oral-auditivas, como o português) que são configurados no espaço pela combinação de movimentos de mãos, movimentos de corpo e expressões faciais e que são apreendidos pelo sentido da visão. A LIBRAS é utilizada pelas comunidades surdas para a comunicação face a face. Como as pessoas surdas vivem em contextos sociais em que a maioria das pessoas são ouvintes, os surdos usuários de LIBRAS precisam aprender o português na sua modalidade escrita, a fim de poderem garantir seus direitos de cidadania.

O uso simultâneo dessas duas línguas de naturezas tão diferentes é o que cria as especificidades interacionais das pessoas surdas. E isso não ocorre apenas em relação a questões estruturais dessas línguas. Há que se considerar, ainda, aspectos culturais ligados às práticas sociais (que incluem práticas sociais que definem certos usos de uma e de outra língua). Portanto, como usam como primeira língua a LIBRAS, é natural que enfrentem dificuldades com o uso do português. Tal como enfrentam dificuldades indivíduos que têm como primeira língua o inglês, o francês, o alemão, ou qualquer outro idioma, e que se colocam na interação com falantes de português, por exemplo.

O desenvolvimento das competências de leitura e de escrita depende de ensino, já que não são competências inatas, mas são construídas nas relações sociais, em situações de ensino e de aprendizagem e são culturalmente consolidadas. O estudo profícuo de uma língua, por isso, precisa considerar os modos de uso dessa língua, em contextos reais de comunicação. Por isso, investir em práticas de ensino que se limitem ao estudo de regras de gramática, ou, em outras palavras, investir em práticas tradicionais de ensino de língua, não é algo produtivo, em especial, para pessoas surdas. Aos professores de português é socialmente atribuído o encargo de inserir as crianças e jovens que têm acesso à educação formal no universo da escrita. Cabe-nos, pois, a formação de leitores e escritores competentes, fato que tem uma implicação importante, que extrapola, em muito, o preparo de indivíduos capazes de decodificar signos linguísticos e de redigir de modo correto.

Essa implicação – de natureza política – envolve o compromisso social com a formação de cidadãos capazes de interferir, de modo consistente, em contextos sociais públicos mais formais a que têm acesso, demodo eficiente, apenas aqueles que conhecem as práticas de letramento, manifestadas por meio da escrita, que, em nossa sociedade, é pressuposto para a vivência da cidadania. Muitas das portas dos setores da administração pública, da universidade e do mercado de trabalho não se abrem para os indivíduos que não desenvolvem ou que desenvolvem precariamente as competências de leitura e de escrita.

Entendemos que a implicação mais importante acarretada pelo investimento na prática pedagógica calcada na concepção de letramento é viabilização do acesso dos estudantes aos bens culturais produzidos por meio da escrita. É um modo de possibilitar a democratização do acesso ao imenso tesouro cultural produzido pelo homem a partir da invenção da escrita e de possibilitar que esses estudantes possam contribuir como agentes da ampliação desse acervo cultural. Assumir a concepção de letramento nas práticas pedagógicas da educação para todos, e em especial da educação de pessoas surdas, parece-nos, portanto, a forma mais pertinente de atender às demandas sociais da atualidade, que requer sujeitos protagonistas, atuantes e autônomos. Em essência, as práticas pedagógicas de letramento de surdos não se distinguem das práticas pedagógicas dirigidas aos ouvintes.

O aspecto básico dessa proposta repousa em possibilitar aos surdos o acesso aos gêneros textuais que são produzidos e que circulam na sociedade, nos diferentes domínios discursivos e de viabilizar meios para que os estudantes surdos possam compreender como se organizam e funcionam esses gêneros. Como há especificidades interacionais instauradas pela surdez, ganha relevo, nesse processo, a necessidade de o educador conhecer a LIBRAS e as peculiaridades do modo de expressão vísuo-espacial, assim como os aspectos da cultura surda de que se constituem as práticas interacionais dos surdos, a fim de poderem desenvolver estratégias didático-metodológicas que viabilizem uma prática pedagógica satisfatória. Por isso, é imprescindível o apoio permanente das autoridades para a implementação de processos de formação continuada de boa qualidade que ajudem a esses profissionais a não se renderem ao simplismo e à esterilidade das práticas pedagógicas tradicionais de ensino de língua.

Gláucia Nascimento é doutora em Linguística, professora da UFPE e líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre LIBRAS (GEPEL/UFPE) e integrante da equipe pedagógica do Centro de Estudos em Educação e Linguagem (Ceel/Ufpe)

Fonte: http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/opiniao/noticia/2011/05/10/letramento-na-educacao-de-surdos-4026.php

Um comentário:

  1. edite maria coelho da silva4 de julho de 2011 às 11:34

    Estou muito contente com este decreto. Pois sou professora da Escola Cônego Rochael de Medeiros, ensino Língua Portuguesa, para três turmas de alunos surdos, o 6ºE, o 7ºC e o 8º B. Sinto como é necessário para eles que o professor da disciplina estudada saiba LIBRAS. Por isso estou fazendo o curso avançado no CAS. Fiz Letras/Português/Inglês na UFPE, terminei licenciatura 2004.1. Para mim é muito importante o estudo da LIBRAS.

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